O Roteiro do Delator: Quando a Justiça se Contentar com um "Ouvi Dizer"?
Se a palavra de um réu confesso basta para denunciar, qual o valor da presunção de inocência e da prova no processo penal?
No condomínio onde moro, uma fofoca no grupo de WhatsApp tem mais força que um fato. Uma reclamação sobre barulho, mal fundamentada e baseada em "ouvi dizer", pode gerar uma notificação da administradora antes mesmo que qualquer verificação seja feita. É o triunfo da narrativa sobre a realidade. Assusta pensar que, por vezes, o sistema de justiça criminal brasileiro, com todo o seu aparato e poder de destruir reputações e vidas, flerta perigosamente com essa mesma lógica.
A recente e sóbria decisão do ministro Messod Azulay Neto, do Superior Tribunal de Justiça, no RHC 197.253/SP, serve como um farol em meio à névoa do punitivismo pragmático. Ao trancar uma ação penal por corrupção fundamentada exclusivamente na palavra de um delator, o ministro não fez nada revolucionário; ele simplesmente aplicou a lei e reafirmou o óbvio: no Direito, "ouvi dizer" não pode ser sinônimo de prova.
O Delator como Roteirista e o Ministério Público como Diretor
A colaboração premiada, importada e adaptada como a grande panaceia contra a criminalidade complexa, especialmente a de colarinho branco, tornou-se uma ferramenta poderosa. Poderosa demais, talvez. Em sua essência, ela é um meio de obtenção de prova, um ponto de partida. O delator, em troca de benefícios, aponta um caminho, entrega um mapa. Cabe ao Estado, com seus órgãos de investigação, percorrer essa trilha e encontrar o tesouro: as provas materiais, os documentos, as testemunhas independentes, os dados que corroboram a narrativa.
O que temos visto, no entanto, é uma perigosa inversão. O delator deixa de ser o guia para se tornar o roteirista. Sua narrativa, muitas vezes a única peça disponível, é transformada em um roteiro pronto, e o Ministério Público, em alguns casos, assume o papel de diretor que apenas filma a história contada, sem checar o cenário ou a veracidade dos diálogos. A denúncia, nesse modelo, vira a mera adaptação de uma obra de ficção, com potencial de se tornar um drama real na vida do delatado.
Se a palavra de quem busca desesperadamente um prêmio (a redução de sua própria pena) é suficiente para colocar um cidadão no banco dos réus, qual o verdadeiro incentivo para que o Estado investigue a fundo? E, mais grave, não estamos criando um mercado de narrativas, onde a versão mais conveniente para a acusação vale mais do que a mais próxima da verdade?
A Lei Existe, Basta Cumpri-la
A decisão do ministro Messod Azulay Neto é um lembrete pedagógico de que não estamos em um vácuo legislativo. O parágrafo 16 do artigo 4º da Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) é solar em sua clareza: "Nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador". A lista inclui medidas cautelares, o recebimento da denúncia e, claro, a sentença condenatória.
Ignorar essa regra não é um ato de "eficiência" no combate à corrupção, como alguns podem argumentar. É, na verdade, um ato de conveniência que corrói os alicerces do devido processo legal. É admitir que, para certos "inimigos", as garantias podem ser relativizadas. Como bem apontado pela defesa no caso concreto, até mesmo a investigação administrativa interna não encontrou provas do conluio, mas, ainda assim, a palavra solitária do delator foi considerada suficiente para iniciar uma ação penal. Isso é inaceitável.
Lembremos de obras como a série "O Mecanismo", que retratou o auge da Lava Jato. A ficção, inspirada na realidade, mostrou o poder avassalador das delações. O que a dramaturgia muitas vezes não consegue captar é a angústia silenciosa de quem é arrastado para o centro do furacão com base em uma única versão, sem um fiapo de prova material para se defender.
O Preço do Atalho é a Injustiça
Vejo com extrema preocupação essa tentativa de transformar a colaboração premiada em um fim em si mesma. A luta contra a corrupção e o crime organizado é vital, mas não pode ser feita ao arrepio da Constituição e das leis. Atalhos processuais, por mais sedutores que pareçam, quase sempre terminam no pântano da injustiça.
A solução não é demonizar a colaboração premiada, mas recolocá-la em seu devido lugar: o de uma ferramenta de investigação, um ponto de partida que exige corroboração robusta e independente. O Estado não pode terceirizar sua obrigação de provar.
A justiça que se contenta com um roteiro escrito por um réu confesso, sem se dar ao trabalho de verificar os fatos, é uma justiça preguiçosa. E uma justiça preguiçosa, que abre mão de buscar a verdade real em troca da comodidade de uma narrativa, é o caminho mais curto para o erro judiciário. E esse é um preço que nenhuma sociedade que se pretenda democrática pode pagar.